domingo, 26 de abril de 2015

O Príncipe Encantado


Quando se fala de Brasil, não estamos falando de um grande país, mas de um bloco de terras  com vários “países” em cima e que por questões políticas e econômicas ao invés de serem divididos como países foram divididos como estados de um grande país.

Só sendo brasileiro para entender, cada vez que você cruza a fronteira interestadual, parece que nem o idioma é o mesmo, mudam as pessoas, sua cultura, raízes, valores, muda tudo. Por exemplo, todo paulista é workaholic, frio e ao mesmo tempo “cool”, o carioca é cara dos prazeres, o bom “vivant”, e o mineiro, bem o mineiro é aquele que é gente boa toda vida uai, e isso só falando um pouco da região sudeste.

Então se era para falar de príncipe encantado, eu só poderia encontrar um mineiro, , afinal o príncipe encantado não é um poço de virtude, moral e bons costumes? Amado por todos, devido a sua humildade, bondade, generosidade e amorosidade?

Diferente do que se possa imaginar, meu encontro com o príncipe encantado não foi em Minas. Não, eu não estava em uma viagem de férias, linda e solitária em um barzinho de uma pequena cidade pra lá de charmosa, quando em meio a um incidente fui socorrida pelo homem que seria meu príncipe encantado.

Definitivamente não foi assim. Primeiro porque eu estava trabalhando, e não de férias, além disso, eu estava solitária, mas longe de ser ou estar linda, e geralmente eu não era socorrida em meio a incidentes, eu socorria, consertava e melhorava as coisas, acabando com as possibilidades de incidentes.

E foi assim que eu conheci o meu príncipe encantado, em uma sexta-feira, na véspera do pior feriado brasileiro, o carnaval. Pois bem, iniciei o dia trabalhando com o pior dos humores, entenda: sou paulista, workaholic, e trabalho no Rio de Janeiro. Nem em um milhão de anos eu entenderia a marcha lenta carioca na véspera do carnaval, eu raramente parava no dia do carnaval[1], que dirá na véspera.  Portanto com todos em marcha lenta, os problemas mais graves perdiam a gravidade para a maioria, menos para mim.

Já beirava às 17 horas dessa sexta-feira e eu ainda discutia com o diretor da empresa a solução para um grave problema de um cliente. E por mais boa vontade que ambos tivéssemos, faltava o técnico na área de engenharia para nortear a decisão, mas era véspera de carnaval, e esse técnico já estava bem longe da empresa e com o celular desligado. Assim quando foi 17h 05 daquele dia saí em busca de um técnico de uma empresa parceira para elucidar a questão.

Entrei na sala da empresa, transtornada, com mil quilos nas costas, um quê de assassino no olhar, e sem nenhuma das vaidades femininas, eu usava camisa e calça preta de corte reto enfatizando um visual austero, coque e óculos quadrados, além da costumeira bota de segurança que em nada combinava com minha roupa, aliás só a piorava. Entrei com a delicadeza de um mastodonte, perguntando: – Boa tarde quem é o Davi? Dada a minha delicadeza e minha considerável fama de ser feita de aço, dois rapazes que estavam na sala balbuciaram um boa tarde, colocando suas mochilas nas costas e saíram da sala, o terceiro e único que restou, se virou e me abriu o sorriso que me transformou em absolutamente nada, em uma forma viva sem nenhuma capacidade de raciocínio, ou utilização de sinapses cognitivas simples como falar.

- Olá você deve ser a Manuela, meu chefe disse que você viria, e eu estava te esperando, você está com dúvida nos cálculos estruturais de construção de um equipamento não é?

Eu simplesmente não conseguia falar, meu corpo estava em choque, meu coração disparado, minha mente parecia pura gelatina e mesmo tendo ouvido o que ele disse eu não conseguia processar a informação, não o suficiente para dar uma resposta simples e coerente como um “sim”. Na verdade, eu sentia naquele momento que tinha muita sorte por estar em pé, enquanto sentia que minhas pernas estavam fracas.

Ele era um príncipe com todos os predicados de príncipe, lindo da cabeça aos pés, rosto perfeito, esculpido, cabelos lisos, claros, bagunçados e olhos verdes, não um verde vítreo, como da maioria, mas um verde intenso, dotado de uma transparência que me deixou sem ação, mais que isso, o julgamento que costumava ver nos olhos das pessoas com que me relacionava no trabalho, dada a minha seriedade e dureza, não estavam presentes nestes olhos que me olhavam agora. Eram olhos limpos, puros, sem nada além da disposição de ajudar, olhos “daquele que é gente boa toda vida uai!”

E ao me deparar com esses olhos, não senti mais os mil quilos que carregava, não senti a tensão do dia, nem os problemas que se acumulavam na minha cabeça, não, eu de repente senti a plenitude dos meus momentos de sonho, quando me sentava no parque, numa árvore no meio da colina e me tornava consciente apenas da natureza a minha volta e da canção em meus ouvidos.

- Acho que esse é o projeto, não é? - Ele já estava meio sem jeito quando me disse isso, claro ele devia estar imaginando que estava de frente para um zumbi e ao dizer essas palavras ele pegou os papéis na minha mão e começou a examinar.

- Senta, posso te oferecer água, café? - Ainda não tinha recuperado minha capacidade de falar, assim apenas fiz a negativa com a cabeça.

- Vamos lá deixa eu ver, - disse ele observando o papel. -Bem o projeto é simples, o erro é clássico, seu cliente não é o primeiro e nem o único a cometer esse erro, ele deixou de considerar um item normativo, a maneira correta de fazer esse cálculo é a seguinte ... - ele discorreu uma completa explicação da norma e do cálculo, refazendo-o, algo que em qualquer outra circunstância eu teria adorado, adorava aprender coisas novas, mas naquela ocasião aquilo me matava por eu ser incapaz de processar as informações que me eram passadas. Eu continuava na plenitude, na felicidade daquele momento na colina, observando a natureza a minha volta, os campos verdes, embora tivesse conseguido manter meus olhos nos papéis que ele rascunhava.

- Prontinho, com isso você consegue realizar o serviço para o seu cliente. Ficou alguma dúvida? – mais uma negativa com a cabeça. – Sabe já tinham me falado de você, que você era muito inteligente e sagaz, mas entender um cálculo desse assim de primeira sem ser da área? Uau! nunca tinha visto algo assim, deve ser muito bom ser muito inteligente - (ainda bem que ele não se baseava na experiência atual) – Se tiver alguma dúvida ou problema pode me ligar, não importa o horário, aqui está meu cartão, com meu celular e e-mail.

Agradeci, com um simples “obrigada” foi o melhor que consegui fazer e saí dali, contente por não tropeçar em minhas próprias pernas quando saí. Como não estava longe da empresa decidi caminhar ao invés de chamar o motorista, precisava respirar, colocar a cabeça em ordem, precisava esquecer que tinha visto pela primeira vez em trinta e três anos um homem que preenchia as minhas esperanças e me causava um problema até então desconhecido: o desejo.





Musica do dia: Wish you were here – Pink Floyd

Did they get you to trade
Your heroes for ghosts?
Hot ashes for trees?
Hot air for a cool breeze?
Cold comfort for change?
Did you exchange
A walk on part in the war
For a lead role in a cage?

How I wish
How I wish you were here

 




[1] Embora o dia de Carnaval não seja feriado nacional é costume no Rio de Janeiro que as atividades paralisem até no mínimo na terça de carnaval. Em São Paulo algumas empresas não param nem na terça-feira

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