domingo, 26 de abril de 2015

A Realidade


Quarta-feira de cinzas, a casa era um pandemônio, arrumar as malas, arrumar as crianças, colocar tudo no carro, se preparar para partir. Eu achava mesmo a Ana, a esposa do Carlos, uma heroína, mas depois de quatro dias com eles, tive certeza disso. Não era fácil cuidar de três crianças e um cachorro, eu ficava imaginando em qual horário ela descansava, estudava, malhava ... porém mesmo com toda a loucura da vida com crianças o fim de semana foi maravilhoso, entre uma brincadeira e uma briga era impossível pensar em qualquer coisa que não fosse o momento presente, e quando eu finalmente dormia estava tão cansada, que nem sonhar eu sonhava. Dessa forma ao final do feriado, tinha esfriado a cabeça e começado a crer que tudo não passou de um devaneio juvenil tardio.

De volta a empresa era hora de voltar a vida normal. Não que eu esperasse voltar a ver o Davi, os poucos minutos que permitia que minha mente focasse nesse tema, eu mesma me convencia que não tinha com o que eu me preocupar, passou-se um ano sem que eu o conhecesse e não era como se agora ele fosse o único da empresa a nos visitar e eu fosse esbarrar com ele a todo minuto, assim voltei a acreditar que o mundo voltava ao seu eixo original.

Com o passar dos dias a rotina já estava 100% normal, com exceção de mais alguns problemas com o mesmo cliente e o mesmo tipo equipamento. Por mais que trabalhasse em prol da minimização do problema ele só parecia aumentar e em reunião com os demais gerentes o Carlos resolveu ampliar o contrato de prestação de serviços com a empresa em que o Davi trabalhava, ao invés de nos visitar uma vez por semana, eles passariam a estar em nossa fábrica três vezes na semana.

Bem isso poderia ser uma mudança de rota no curso natural das coisas, mas me convenci que não era, ele não era o único técnico da empresa, e até onde eu sabia, eles trabalhavam com o revezamento, seria muito difícil que eu esbarrasse com ele nos corredores da empresa.

Porém uma outra informação importante ao meu respeito é que eu tinha me tornado uma ótima negociadora, passei dois anos em treinamento com o Carlos, e geralmente eu conseguia diminuir em muito os preços de nossos fornecedores, sem diminuir as vantagens, desta forma o Carlos me designou para negociar aquele contrato. Sem maiores problemas fiz contato com o Pedro, gerente da empresa, e o chamei para uma reunião em que negociaríamos um novo contrato com ampliação dos serviços. Adiantei nossas intenções pra que ele já viesse com a proposta preparada.

Poucos minutos antes da reunião, senti uma inquietação incomum, eu só podia estar ficando maluca, ou com todas essas frescuras femininas que tinha aprendido a abominar, eu sabia que a inquietação era em relação ao Davi, mas por Deus fazia um mês desde que tinha visto ele pela primeira vez, eu não podia ser aquelas adolescentes malucas que só de ouvir algo que se relacione com o cara por quem estão apaixonadas piram. Tentei as técnicas de relaxamento pela respiração, chá, água no rosto, mas nada me acalmava.

Quando fui avisada da chegada do Pedro, fui até a sala da Marina nossa gerente comercial e pedi que ela me acompanhasse na reunião. Se ela estranhou não comentou nada. Quando entramos na sala de reunião, eu entendi o motivo da minha inquietação, o edro estava acompanhado por um dos seus técnicos, o Davi.

- Bom dia Manuela, Marina, fiquei muito feliz com o contato de vocês e tenho certeza que a proposta que eu trouxe garantirá uma longa parceria entre as empresas. Trouxe comigo o Davi para participar da negociação, pois caso fechemos o contrato, como sugerido pelo Carlos ele passará a ser técnico residente de vocês. Ambas já o conhecem não é mesmo?

- Bom dia Marina.

- Manuela – quando ele tocou a minha mão e a apertou entre as dele, eu tinha certeza que iria desmaiar, o choque em todo o meu corpo se repetiu, enquanto alguns órgãos deixavam de funcionar, outros passaram a funcionar de maneira enlouquecida.

Eu não pensava, e eu me odiava por não ser capaz de pensar, peguei a proposta nas mãos e passei para a Marina, ela percebeu que havia alguma coisa errada, me olhou com estranheza, mas entendeu que deveria conduzir a reunião Eu era monossilábica, e não fosse os anos de experiência e simpatia da Marina não teríamos fechado o contrato. Reunião encerrada, todos fora da sala, eu levei uns vinte minutos para voltar a respirar normalmente.

Eu me sentia um completo desastre. Eu era um completo desastre, quando a Marina voltou a sala, eu já estava melhor por fora, e péssima por dentro. Eu precisava explicar o que tinha acontecido, e não conseguia pensar em nada além da verdade, pois eu queria desabafar com alguém que pudesse ter a real dimensão dos meus problemas, e todos os meus amigos estavam a 1000 quilômetros de distância assim que quando ela perguntou se estava tudo bem, desatei  a falar.

Quando terminei vi nos olhos dela o que mais temia, pena. Ela sabia que meus sentimentos não tinham futuro. O Davi era mais jovem, tinha vinte e sete anos, era lindo e muito legal. Ele era popular e amado por todos, e era claro que devia ter namorada, caras assim tem namorada desde que nascem, e eu não passava daquilo que era, uma mulher sem grandes predicados femininos, muito acima do peso, sem nenhuma beleza natural e com a fama de ser mais dura e insensível que aço.



 
 
 
 
Musica do Dia: Smile - Charles Chaplin / G. Parsons / J. Turner

Smile, though your heart is aching
Smile, even though it's breaking
When there are clouds in the sky
You'll get by...

If you smile
With your fear and sorrow
Smile and maybe tomorrow
You'll see the sun come shining through, for you

Light up your face with gladness
Hide every trace of sadness
Although a tear may be ever so near
That's the time you must keep on trying
Smile, what's the use of crying?
You'll find that life is still worthwhile
If you'll just smile

That's the time you must keep on trying
Smile, what's the use of crying?
You'll find that life is still worthwhile
If you'll just smile.

O Diabinho


Sabe quando o mocinho tem que fazer uma escolha, e em dúvida ele olha a sua direita e a sua esquerda e observa sentado em cada um dos seus ombros, respectivamente, o anjo e o demônio?

Se alguém quisesse ver com perfeição o olhar do diabinho, bastava que olhasse para o meu diretor cada vez que ele pressentia algo.

Ele era meu chefe há anos, e mais que colegas de trabalho éramos amigos, parceiros. Por isso, assim que passei da porta da sua sala ele percebeu que algo havia acontecido, e enquanto eu lhe entregava os papéis ele me estudava com aquele olhar que só os diabinhos tem.

Apesar de termos uma pequena diferença de idade, acho que o Carlos era o único que não me entendia como uma pessoa de quarenta e cinco anos, mas como uma menina de quinze. O fato de ser casado e pai de duas meninas, e de não ter tido a mais fácil das existências até então, faziam a diferença, mas a questão principal era que ele sempre foi capaz de olhar além, de pressentir com exatidão o futuro. Éramos a maior e melhor empresa em nosso mercado, com um crescimento absurdo por essa visão que ele tinha.

Assim que, tão logo recebeu os papéis, seu primeiro questionamento não foi sobre o problema que tínhamos de resolver, mas sobre como tinha sido com o Davi.

Filho da mãe! É claro, ele conhecia o Davi, aliás, eu era a única na empresa que ainda não conhecia o Davi, ele era afamado e amado por todos, já tinha ouvido falar dele, da ausência de arrogância natural que os profissionais de engenharia costumavam ter, a questão era que como me era de costume, eu não tinha dado bola aos boatos, nem me esforçado em saber quem ele era, ou em conhecê-lo. Mas o Carlos diferente de mim funcionava como um radar e ia fundo em tudo que ouvia falar, e claro quando me mandou àquele escritório mais cedo ele tinha uma dimensão do que poderia acontecer.

O Carlos não era brasileiro, mas já vivia há muitos anos no Brasil. Ele e a mulher eram duas pessoas simplesmente adoráveis, sabe aquelas famílias felizes de comercial de margarina que você acha que não existe? Pois bem quem conhecia o Carlos e a esposa sabiam que essas famílias existem. E eles como boa parte dos meus amigos também tinham a missão de vida de me ver casada e feliz, só que mais que isso, sempre que conversamos eu via neles o desejo sincero de que eu me apaixonasse, e não pelas realidades paralelas que eu criava, mas por alguém que fosse como eles eram um para o outro.

Assim que naquela sua forma imprecisa de falar ele me perguntou:

- E ai o que você achou do Davi?

- Ele domina bem o assunto aí estão os cálculos.

Eu sei minha resposta foi evasiva e fria, porque sinceramente não queria continuar a conversa no rumo que ela deveria tomar, ele não perguntou se eu resolvi o problema, mas o que eu achei do rapaz, e eu sentia que aqueles olhos de diabinho me olhando, sabiam tudo que eu não estava dizendo, e por isso ele parou seus questionamentos ali, examinando os papéis que lhe entreguei.

Resolvemos o problema e ele me convidou para viajar com a família para a casa deles na praia, e eu aceitei, passar o feriado em um lugar deserto, longe da algazarra do carnaval, brincando com as crianças, era tudo que eu podia querer para esquecer de coisas que antes nem imaginava conhecer.
Música do Dia: Esporte Fino Confortável – Zélia Duncan
Tô na geladeira...pra sempre?
E aí, amizade, a nossa amizade,
como é que se sente?
Pois amizade precisa de espaço
Até pro esculacho
Pro acho e não acho também
Que é pra ficar mais forte, tubaína do norte
Esporte fino, confortável, amém!
Pois amizade que é amizade
Íntima rima com intimidade
Briga, mas querendo o bem
Combina com não ter fim
Aprende, ensina, o valor que o lance tem
Descongela aí, me aquece aqui!

Comigo outra vez
Não importa quem fez
O importante é o que faz
O fogo da amizade acender!

O Problema


Se até este ponto você ainda não descobriu sozinho, eu te conto: Sexo para mim era O problema pelo simples fato de eu ser virgem. Não é como se eu fosse celibatária ou algo do gênero, é que simplesmente ainda não tinha acontecido, porque até então eu realmente desconhecia o desejo. Não que eu soubesse disso, mas no dia que eu de fato senti desejo percebi porque tudo que antes eu denominava desejo não tinha me levado a lugar algum, pelo simples fato de não ser o verdadeiro desejo.

Sabe aquele momento em uma festa, uma casa noturna, em que um cara lindo, sexy e com pose de macho alfa, entra exalando sexo e aniquila todas as garotas do lugar jogando-as aos seus pés? Pois é eu nunca vivi esse momento. Não que eu não saísse, na verdade eu era a mais “baladeira” de todas, o problema é que mesmo quando eu via o cara, esse, o macho alfa, eu não sentia absolutamente nada. Não me acontecia aquela magia simples de olhar para um cara e dizer: “nossa como eu quero beijar esse cara”, não, isso simplesmente não acontecia comigo.

E o pior é que eu não vivia como quem quisesse passar por essa experiência, pelo contrário, se eu pensava a fundo em toda a mecânica da coisa eu simplesmente a achava estranha, para não dizer algo mais chocante, e eu sabia que era isso que me mantinha virgem, eu pensava na necessidade do sexo, mas não a sentia de fato. Mesmo antes da terapia eu sabia que isso me passava pelo simples fato de que minhas crenças, minhas esperanças, me remetiam aos sentimentos antes das necessidades, ou seja, o físico para mim só existiria se existissem os sentimentos, e se eles fossem de fato reais, eu não pensava que o beijo seria bom com o cara mais lindo, dos lábios mais bonitos, ou com o que “conhecidamente” beijava melhor, eu pensava que o beijo seria bom mesmo com o cara que eu amasse, porque para mim a magia começava no abstrato e não no concreto.

Assim que como as meninas da minha idade eu sempre estava na rua, mas não pelos motivos convencionais, se eu ia para a noitada, eu sabia quem estaria lá, qual era a banda, a bebida e a comida que serviriam, e sempre era por um destes motivos que eu saía. Com o tempo meus amigos se acostumaram com a minha situação assexuada, houve um curto período em que todos acreditavam que eu era lésbica, depois quando perceberam que minha bússola não apontava em nenhuma direção facilmente assumiram a postura do grande amor impossível, e sinceramente eu não me incomodava em alimentar essa ilusão, era a forma mais fácil de não pensar em nada, de não ser obrigada a nada.

Não me lembro bem qual sábio disse que nosso corpo é nosso templo, embora não me lembre do dono das palavras, me lembro delas, e eu me tratava como um templo, de um só adorador, mas um templo. Minha saída preferida era: “não sou fiel a uma pessoa, porque essa pessoa não está comigo, mas sou fiel aos meus sentimentos.” E assim eu me mantive sozinha por muitos e muitos anos.

Não é como se o sexo me assombrasse, claro a experiência me assombrava, você se pergunta: - Como será? Serei boa? Ou será que vou ser um fiasco? Será que vou saber fazer todas essas coisas que as revistas falam? Nossa como vou conseguir fazer isso sem pensar no quanto realmente é estranho? E como o cara será? Como vou saber se está certo? Errado? E se é bom? E se realmente não for bom, o que eu faço? -  e eu ainda somava a tudo isso uma beleza inexistente e uma forma física nada favorável – eu sabia que contava apenas com quem eu era, e meu medo era que mesmo que sabendo que isso era bom, eu não tinha certeza de que era o bastante.

Mas a verdade é que eu tinha medo mesmo de como seria depois, como poderia permitir que alguém entrasse na minha vida sem disposição para ficar? Eu não queria o melhor amante, não queria grandes experiências sexuais, não queria prazeres inócuos e vazios, eu queria mais, queria amor, queria o amor dos felizes para sempre. E eu tinha certeza que com amor o resto seria simplesmente perfeito.

Se paro pra pensar hoje eu sei que eu tinha os planos perfeitos, eles apenas precisavam acontecer como eu sempre sonhei.
 
 
Musica do dia: O que será (À flor da pele) – Chico Buarque
O que será que me dá
Que me bole por dentro, será que me dá
Que brota à flor da pele, será que me dá
E que me sobe às faces e me faz corar
E que me salta aos olhos a me atraiçoar
E que me aperta o peito e me faz confessar
O que não tem mais jeito de dissimular
E que nem é direito ninguém recusar
E que me faz mendigo, me faz suplicar
O que não tem medida, nem nunca terá
O que não tem remédio, nem nunca terá
O que não tem receita

O que será que será
Que dá dentro da gente e que não devia
Que desacata a gente, que é revelia
Que é feito uma aguardente que não sacia
Que é feito estar doente de uma folia
Que nem dez mandamentos vão conciliar
Nem todos os unguentos vão aliviar
Nem todos os quebrantos, toda alquimia
E nem todos os santos, será que será
O que não tem descanso, nem nunca terá
O que não tem cansaço, nem nunca terá
O que não tem limite

O que será que me dá
Que me queima por dentro, será que me dá
Que me perturba o sono, será que me dá
Que todos os tremores me vêm agitar
Que todos os ardores me vêm atiçar
Que todos os suores me vêm encharcar
Que todos os meus nervos estão a rogar
Que todos os meus órgãos estão a clamar
E uma aflição medonha me faz implorar
O que não tem vergonha, nem nunca terá
O que não tem governo, nem nunca terá
O que não tem juízo

 

O Príncipe Encantado


Quando se fala de Brasil, não estamos falando de um grande país, mas de um bloco de terras  com vários “países” em cima e que por questões políticas e econômicas ao invés de serem divididos como países foram divididos como estados de um grande país.

Só sendo brasileiro para entender, cada vez que você cruza a fronteira interestadual, parece que nem o idioma é o mesmo, mudam as pessoas, sua cultura, raízes, valores, muda tudo. Por exemplo, todo paulista é workaholic, frio e ao mesmo tempo “cool”, o carioca é cara dos prazeres, o bom “vivant”, e o mineiro, bem o mineiro é aquele que é gente boa toda vida uai, e isso só falando um pouco da região sudeste.

Então se era para falar de príncipe encantado, eu só poderia encontrar um mineiro, , afinal o príncipe encantado não é um poço de virtude, moral e bons costumes? Amado por todos, devido a sua humildade, bondade, generosidade e amorosidade?

Diferente do que se possa imaginar, meu encontro com o príncipe encantado não foi em Minas. Não, eu não estava em uma viagem de férias, linda e solitária em um barzinho de uma pequena cidade pra lá de charmosa, quando em meio a um incidente fui socorrida pelo homem que seria meu príncipe encantado.

Definitivamente não foi assim. Primeiro porque eu estava trabalhando, e não de férias, além disso, eu estava solitária, mas longe de ser ou estar linda, e geralmente eu não era socorrida em meio a incidentes, eu socorria, consertava e melhorava as coisas, acabando com as possibilidades de incidentes.

E foi assim que eu conheci o meu príncipe encantado, em uma sexta-feira, na véspera do pior feriado brasileiro, o carnaval. Pois bem, iniciei o dia trabalhando com o pior dos humores, entenda: sou paulista, workaholic, e trabalho no Rio de Janeiro. Nem em um milhão de anos eu entenderia a marcha lenta carioca na véspera do carnaval, eu raramente parava no dia do carnaval[1], que dirá na véspera.  Portanto com todos em marcha lenta, os problemas mais graves perdiam a gravidade para a maioria, menos para mim.

Já beirava às 17 horas dessa sexta-feira e eu ainda discutia com o diretor da empresa a solução para um grave problema de um cliente. E por mais boa vontade que ambos tivéssemos, faltava o técnico na área de engenharia para nortear a decisão, mas era véspera de carnaval, e esse técnico já estava bem longe da empresa e com o celular desligado. Assim quando foi 17h 05 daquele dia saí em busca de um técnico de uma empresa parceira para elucidar a questão.

Entrei na sala da empresa, transtornada, com mil quilos nas costas, um quê de assassino no olhar, e sem nenhuma das vaidades femininas, eu usava camisa e calça preta de corte reto enfatizando um visual austero, coque e óculos quadrados, além da costumeira bota de segurança que em nada combinava com minha roupa, aliás só a piorava. Entrei com a delicadeza de um mastodonte, perguntando: – Boa tarde quem é o Davi? Dada a minha delicadeza e minha considerável fama de ser feita de aço, dois rapazes que estavam na sala balbuciaram um boa tarde, colocando suas mochilas nas costas e saíram da sala, o terceiro e único que restou, se virou e me abriu o sorriso que me transformou em absolutamente nada, em uma forma viva sem nenhuma capacidade de raciocínio, ou utilização de sinapses cognitivas simples como falar.

- Olá você deve ser a Manuela, meu chefe disse que você viria, e eu estava te esperando, você está com dúvida nos cálculos estruturais de construção de um equipamento não é?

Eu simplesmente não conseguia falar, meu corpo estava em choque, meu coração disparado, minha mente parecia pura gelatina e mesmo tendo ouvido o que ele disse eu não conseguia processar a informação, não o suficiente para dar uma resposta simples e coerente como um “sim”. Na verdade, eu sentia naquele momento que tinha muita sorte por estar em pé, enquanto sentia que minhas pernas estavam fracas.

Ele era um príncipe com todos os predicados de príncipe, lindo da cabeça aos pés, rosto perfeito, esculpido, cabelos lisos, claros, bagunçados e olhos verdes, não um verde vítreo, como da maioria, mas um verde intenso, dotado de uma transparência que me deixou sem ação, mais que isso, o julgamento que costumava ver nos olhos das pessoas com que me relacionava no trabalho, dada a minha seriedade e dureza, não estavam presentes nestes olhos que me olhavam agora. Eram olhos limpos, puros, sem nada além da disposição de ajudar, olhos “daquele que é gente boa toda vida uai!”

E ao me deparar com esses olhos, não senti mais os mil quilos que carregava, não senti a tensão do dia, nem os problemas que se acumulavam na minha cabeça, não, eu de repente senti a plenitude dos meus momentos de sonho, quando me sentava no parque, numa árvore no meio da colina e me tornava consciente apenas da natureza a minha volta e da canção em meus ouvidos.

- Acho que esse é o projeto, não é? - Ele já estava meio sem jeito quando me disse isso, claro ele devia estar imaginando que estava de frente para um zumbi e ao dizer essas palavras ele pegou os papéis na minha mão e começou a examinar.

- Senta, posso te oferecer água, café? - Ainda não tinha recuperado minha capacidade de falar, assim apenas fiz a negativa com a cabeça.

- Vamos lá deixa eu ver, - disse ele observando o papel. -Bem o projeto é simples, o erro é clássico, seu cliente não é o primeiro e nem o único a cometer esse erro, ele deixou de considerar um item normativo, a maneira correta de fazer esse cálculo é a seguinte ... - ele discorreu uma completa explicação da norma e do cálculo, refazendo-o, algo que em qualquer outra circunstância eu teria adorado, adorava aprender coisas novas, mas naquela ocasião aquilo me matava por eu ser incapaz de processar as informações que me eram passadas. Eu continuava na plenitude, na felicidade daquele momento na colina, observando a natureza a minha volta, os campos verdes, embora tivesse conseguido manter meus olhos nos papéis que ele rascunhava.

- Prontinho, com isso você consegue realizar o serviço para o seu cliente. Ficou alguma dúvida? – mais uma negativa com a cabeça. – Sabe já tinham me falado de você, que você era muito inteligente e sagaz, mas entender um cálculo desse assim de primeira sem ser da área? Uau! nunca tinha visto algo assim, deve ser muito bom ser muito inteligente - (ainda bem que ele não se baseava na experiência atual) – Se tiver alguma dúvida ou problema pode me ligar, não importa o horário, aqui está meu cartão, com meu celular e e-mail.

Agradeci, com um simples “obrigada” foi o melhor que consegui fazer e saí dali, contente por não tropeçar em minhas próprias pernas quando saí. Como não estava longe da empresa decidi caminhar ao invés de chamar o motorista, precisava respirar, colocar a cabeça em ordem, precisava esquecer que tinha visto pela primeira vez em trinta e três anos um homem que preenchia as minhas esperanças e me causava um problema até então desconhecido: o desejo.





Musica do dia: Wish you were here – Pink Floyd

Did they get you to trade
Your heroes for ghosts?
Hot ashes for trees?
Hot air for a cool breeze?
Cold comfort for change?
Did you exchange
A walk on part in the war
For a lead role in a cage?

How I wish
How I wish you were here

 




[1] Embora o dia de Carnaval não seja feriado nacional é costume no Rio de Janeiro que as atividades paralisem até no mínimo na terça de carnaval. Em São Paulo algumas empresas não param nem na terça-feira

O Início


Dizer que sexo era um problema seria eufemismo de minha parte. Esse não era um problema, era O problema. E eu sabia que se esse problema se resolvesse da forma que eu previa, seria meu fim, eu enlouqueceria, minha existência  findaria ali.
Bem para entender o meu problema você tem que entender quem eu sou primeiro.
Sabe toda aquela coisa de fada madrinha, sapatinho de cristal, dedo na roda de fiar, maçã envenenada e o beijo puro do amor verdadeiro? Então toda essa “coisa” sou eu. Bem não propriamente eu, mas as minhas crenças, ou melhor, as minhas esperanças. Aos 33 anos eu podia não admitir em voz alta para as pessoas, e podia fazer perfeitamente meu papel de ser desprovida desse redemoinho de emoções que chamam de coração, mas a verdade era que na minha essência eu era irremediavelmente romântica.
Então simplifiquei a minha vida ao não estou interessada, alternando com o estou interessada no impossível. Entendam, eu na minha profissão, na minha família e com meus amigos agia como uma mulher muito além da minha idade, meu nível de maturidade era relativamente alto, não foram poucas as vezes em que ouvi – nossa como você é jovem, imaginava uma pessoa mais velha – até minha terapeuta dizia que minha idade racional era de uma mulher de 45 anos; e nesse ponto evolutivo não podia agir como uma romântica menina de 15 anos a espera do príncipe encantado.
Porém a questão era que emocionalmente eu era essa romântica menina de 15 anos esperando o príncipe encantado.
Louco? Idiota? Improvável?
Pois é, eu conhecia todas essas palavras, e outras mais, só que elas realmente não me incomodavam.
Assim, passei a colecionar paixões inventadas, sofrimentos infundados, companheiros perfeitos que nunca seriam meus companheiros de fato.
Afinal com essa idade porque mesmo você está sozinha? Quando as pessoas te fazem essa pergunta, alternando entre a piedade no olhar e a vontade de lhe atribuir um grande sofrimento e infelicidade, elas não querem ouvir apenas – não achei a pessoa certa– elas esperam ouvir um grande sofrimento, uma tragédia, algo que te endureceu a alma, e que elas em toda sua sabedoria e magnificência te ajudariam a resolver.
Eu precisava ser apenas mais uma história triste que as pessoas em seu mundinho feliz tentariam resolver, da qual elas se compadeceriam versando a injustiça do mundo, da vida e até mesmo de Deus.
Então passei a ter no currículo tragédias para todos os gostos, do professor sedutor ao amigo que nunca perceberia todo o meu amor (e pelo qual eu não podia lutar, já que meu amor era tão grande que apenas vê-lo feliz me satisfazia). E não eram “causos” inverídicos, mas realidades produzidas, vividas e sofridas por mim.
A minha vida era a peça de teatro que eu mesma encenava todos os dias, mergulhando tão profundamente na personagem, que vivia todas as emoções que encenava. Era como se a minha vida se passasse em um palco.
E nesse palco da vida, como toda boa heroína de uma história triste, era reconhecida por minha força e positividade com relação a essa cruel e atroz vida que me foi destinada.
Mas a verdade, e agora eu sabia a verdade, era que eu não era forte, nem positiva, eu apenas não tinha aquelas emoções todas dentro de mim de fato, nascidas e arraigadas no coração, por isso eu esquecia, eu me recuperava, eu recomeçava e sorria.
E poderia ter seguido sem problemas, nessa realidade paralela onde O problema, nunca seria um problema, se o pior não tivesse me acontecido, se eu não me encontrasse de fato com ele, o príncipe encantado.
E foi por isso, por esse encontro que eu sabia, eu de fato enlouqueceria se ele, o príncipe encantado, resolvesse O problema.
 
 
 
Música do dia: SKA – Paralamas do Sucesso
A vida não é filme, você não entendeu
Ninguém foi ao seu quarto quando escureceu
Sabendo o que passava no seu coração
Se o que você fazia era certo ou não
E a mocinha se perdeu olhando o Sol se por
Que final romântico, morrer de amor
Relembrando na janela tudo que viveu
Fingindo não ver os erros que cometeu

E assim
Tanto faz
Se o herói não aparecer
E daí
Nada mais